domingo, 24 de janeiro de 2010

E não para de chover

Agora eu vou contar a história de uma goteira. Pois mesmo a gente às vezes vaza, escorre pela parede de um teto que queria inteiro e anônimo. E porque é só na falha que o teto surge. Não que o marido fizesse falta só pra isso (falando assim eu até pareço uma), mas não havia como negar que nesses tropeços do dia-a-dia, nas coisas que se quebravam de solidão. Ela trocou o balde pela toalha na esperança de que fizesse menos barulho e ela pudesse enfim dormir. Qual o quê! Toc. Toc. Toc. Ele se levantou e foi olhar à porta. Era um rapaz muito ansioso e às vezes fazia isso: ia até o olho mágico e, antes de ver, suspirava fundo o suspiro dizia "é agora". Nunca era. Então ele voltava pro sofá e percebia: se confundira com a onomatopeia. Toc, toc, toc. Põe mais uma toalha. O chão vai estar enlameado, o menino olha assustado a velocidade com que o balde enche, transborda, enxurrada que leva os barracos. Até que enfim o irmãozinho dormiu. Agora ele tem treze anos e senta com as pernas cruzadas, mais feminina quanto menos gente por perto. Toc, toc, toc. A mãe trabalha à noite, faz faxina, ele transforma a camiseta num top e se deita de luz acesa pra poder apreciar: bonitos seios, marido que chega e ama, rasga o seu corpo no meio, goteja por dentro e depois morre, toc, toc, toc, quando entra o padrasto!

E ele leva um susto, salta do sofá se recompõe sem suspirar, tira a cinta ela encolhe na cama nem tempo pra pedir: "a goteira", baixa as calças, o menino apaga a luz o rapaz apanha escorrega na toalha da viúva: é agora: entra o padrasto, nessas horas em que o cotidiano estraga ele faz falta, a mãe chega e abre a porta, "é agora": todos estão vestidos e o menino desfez o top. Ela se despe, olha os filhos, o marido, vira viúva e beija a testa do rapaz - que dorme. Sem luz no barraco, sem chuva, ela deita e escuta: toc. Toc. Toc.

Nenhum comentário:

Postar um comentário